Marco Civil da Internet lançou as bases do constitucionalismo digital

A internet não apenas mudou o mundo (1) — redesenhou os contornos da cidadania, da privacidade e da própria democracia. Mas será que nossa legislação digital acompanhou esse ritmo avassalador?
Desde sua promulgação em 2014, a Lei nº 12.965, o Marco Civil da Internet, foi celebrada como um divisor de águas na regulação digital no Brasil. Uma “Constituição da Internet” (2). Fruto de um processo participativo iniciado em 2009 e erigido sobre os pilares da liberdade de expressão, proteção à privacidade e neutralidade da rede, representou um avanço civilizatório em tempos de crescente digitalização das relações sociais.
Mais de uma década depois, surge uma questão legítima: o Marco Civil precisa evoluir ou apenas ser corretamente interpretado?
Tal distinção é crucial. As novas tecnologias, como inteligência artificial generativa, algoritmos preditivos e redes descentralizadas, desafiam constantemente a capacidade do Direito de oferecer respostas céleres e adequadas.
Construção principiológica
Não por acaso, uma crítica recorrente ao Marco Civil foi sua suposta repetição de princípios já consagrados na Constituição: liberdade de expressão, inviolabilidade da intimidade, sigilo das comunicações e direito à informação.
Longe de ser um demérito, essa escolha foi estratégica: consolidou direitos no ambiente digital sem sufocar o dinamismo tecnológico, já revelando a limitação imposta pelo contexto da época. Foi a forma mais segura encontrada para garantir que o marco informático sobrevivesse às transformações que viriam.
Essa construção principiológica, porém, nasceu num contexto pré-algorítmico. Não havia, então, maturidade normativa para tratar com segurança de temas ainda incipientes como portabilidade de dados, transparência algorítmica e moderação automatizada (decisões tomadas por sistemas sem intervenção humana sobre o que pode ou não circular online) — questões que hoje se impõem (3) e que buscam regulamentação de forma fragmentada nas legislações posteriores.
É nesse ponto que a interpretação evolutiva e teleológica ganha relevância: as tensões contemporâneas, como a recente decisão (4) do Supremo Tribunal Federal que flexibilizou a exigência de ordem judicial para responsabilizar provedores, revelam que o Marco Civil por si só não encerra o debate, mas pode balizar seu enfrentamento.
Além disso, a convivência entre o Marco Civil e normas como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) demonstrou que complementaridade é possível, sem que se perca o núcleo das garantias originais (5).
Reconfiguração de princípios
No entanto, reformas desatentas a essa lógica podem abrir caminho para retrocessos e para o aviltamento das garantias pétreas fundamentais.
A extinção da Norma nº 4/1995 da Anatel, prevista para 2027, é um exemplo de alteração técnica infralegal, mas com implicações jurídicas profundas.
Ao eliminar a distinção entre serviços de telecomunicações e serviços de valor adicionado, corre-se o risco de sufocar provedores regionais, concentrar o mercado nas mãos de poucas operadoras e burocratizar o acesso à internet.
Neste cenário a Anatel, em um papel de agência regulamentadora também da Internet, poderia acabar comprometendo os princípios da universalização do acesso e da neutralidade de rede (6), entre outras possibilidades. Trata-se apenas de um paradigma entre outros que podem soar de absurdos até desastrosos.
O desafio, portanto, é a releitura, a reconfiguração de princípios clássicos já imunes ao tempo. Não precisamos de mais leis, mas sim de leis efetivas em harmonia com os demais direitos fundamentais, aliadas de uma interpretação sistêmica condizente.
Ciberconstituição
Porém, estamos diante de uma nova esfera de existência, e ela demanda novos pactos normativos. Estaríamos diante de novos bens jurídicos tutelados (7)?
É justamente nesse contexto que a ideia de uma “ciberconstituição”, ou constituição digital, volta ao centro do debate. Não como ruptura radical, mas como reconhecimento de que o ambiente digital é um espaço com dinâmicas próprias, em que direitos tradicionais nem sempre bastam, ou se mostram insuficientes e mal adaptados.
Por outro lado, a criação formal de uma “ciberconstituição” certamente enfrentaria robustas barreiras políticas e jurídicas. Ainda assim, o conceito é fértil, e nos obriga a repensarmos o Direito a partir de uma realidade cada vez mais virtualizada e não apenas como uma adaptação do mundo físico.
Fonte: Conjur