O contrato de constituição de renda, embora consolidado nos ordenamentos civis desde o Código Napoleônico (1804), ainda não é muito utilizado no Brasil pelas pessoas e pelas empresas, quiçá por desconhecimento de suas potencialidades.
Atualmente, no Código Civil de 2002, ele está previsto no art. 803, com o seguinte conceito: “Pode uma pessoa, pelo contrato de constituição de renda, obrigar-se para com outra a uma prestação periódica, a título gratuito”. Valiosa também é a previsão do art. 804: “O contrato pode ser também a título oneroso, entregando-se bens móveis ou imóveis à pessoa que se obriga a satisfazer as prestações a favor do credor ou de terceiros”.
Ou seja, em linhas gerais, pessoas podem oferecer bens a outras, em troca de prestações sucessivas. Muitas são as razões que motivam a formação desse contrato, como, por exemplo, a obtenção de maior tranquilidade. Joaquim entrega a propriedade de sua casa, porém conserva o direito de usufruto. Em troca, acorda o recebimento de uma prestação mensal de tantos mil reais, enquanto viver. Como bem diagnostica Pontes de Miranda, “nos contratos onerosos de constituição de renda vitalícia, há álea”. Esse tipo de operação econômica faz bastante sentido para muitas famílias.
Falando em famílias, uma situação interessante na qual se visualiza a utilidade da constituição de renda ocorre em divórcios e partilhas de bens. Através de negociação, ao invés de simplesmente dividir o patrimônio (como imóveis ou quotas sociais), podem os interessados estipular uma partilha desequilibrada dos bens, garantindo-se a um dos cônjuges uma renda periódica ou vitalícia. Assim, uma das partes terá acesso ao patrimônio e poderá administrá-lo, remunerando a outra com a renda garantida acordada.
No STJ, um caso bastante interessante envolveu um casal divorciado. O marido, quatro anos após a conversão da separação em divórcio, protocolou ação de exoneração de pensão alimentícia, sustentando “significativa melhora da situação financeira da ex-esposa”. A sentença foi procedente, analisando o caso sob o tradicional binômio da pensão alimentícia.
Entretanto, o TJ-SP reformou a sentença, considerando que - em realidade - não se tratava de pensão alimentícia, mas sim de um acordo de constituição de renda. Para a Corte, os “alimentos” que foram fixados de comum acordo faziam “as vezes de verdadeira indenização, já que a mulher abriu mão da maior parte do acervo patrimonial a que teria direito, em função da partilha dos bens do casal”.
Na fundamentação de seu voto, o relator entendeu que a ex-esposa “foi extremamente ingênua, entretanto, ao se separar. Pois abriu mão praticamente do patrimônio inteiro a que faria jus, em razão da partilha de bens então havida. E o fez em troca, justamente, dos alimentos então estabelecidos. O que constou expressamente do acordo de separação. Fazendo os alimentos, assim, as vezes de verdadeira indenização, sob a forma de rendimentos mensais: um pensionamento vitalício assemelhado ao instituto da constituição de renda de que trata o Código Civil”.
No STJ, houve duas linhas distintas de raciocínio. Primeiro, o relator Luis Felipe Salomão enfocou o caso à luz dos “alimentos compensatórios”, tendo fixado o prazo de cinco anos, a contar da sessão de julgamento, para o pagamento da verba compensatória à ex-esposa, que era de R$ 5.000,00. Realçou que a sua decisão foi elaborada “para alcançar a finalidade de reequilíbrio material das partes, haja vista o acervo patrimonial do ex-cônjuge varão”. Ela teria tido vantagem quando da partilha de bens.
A seguir, a ministra Maria Isabel Gallotti abordou o caso de maneira distinta. Considerou “que a obrigação assumida pelo recorrente no acordo de separação, segundo a moldura fática traçada pelas instâncias de origem, não se enquadra como alimentos compensatórios, tendo a natureza de constituição de renda”. Embora pelo regime da comunhão universal, a esposa tivesse direito à meação, ela “concordou, todavia, em abrir mão de quase a totalidade dos bens que fazia jus a título de meação em prol da renda estabelecida que lhe seria destinada”.
A ministra Gallotti, portanto, entendeu “que a constituição de renda é um contrato em que o instituidor entrega ao rendeiro determinado capital, podendo ser dinheiro ou bem, a fim de que este se obrigue a prestar-lhe renda, de forma periódica ou não. Imperioso concluir, portanto, que esse é o caso dos autos, pois a recorrida entregou ao ora recorrente bens (capital) em troca de prestação de renda periódica”.
Concluiu que “o não cumprimento do pactuado pelo recorrente - pagamento vitalício da renda estabelecida à recorrida - implicaria o retorno à situação anterior, com o desfazimento do acordo, acarretando a necessidade de nova partilha de bens do ex-casal”.
O ministro Raul Araújo concordou com essa segunda posição e agregou que o caso deveria ser julgado à luz do direito contratual (e não sob a ótica da pensão alimentícia), enfatizando que “tratando-se, no entanto, de obrigação de trato sucessivo, que se prolonga no tempo, alteradas as condições econômicas do obrigado, nada impede que, excepcionalmente, possa ser revista mediante procedimento próprio, nos termos da teoria da imprevisão (CC/2002, arts. 478 e seguintes), ou até mesmo extinta”.
O julgamento foi concluído também com a adesão dos ministros Antonio Carlos Ferreira e Marco Buzzi. (REsp nº 1.330.020/SP).
Com este artigo, tentei potencialidades que existem desde longa data no direito brasileiro, mas que ainda não foram adequadamente estudadas e utilizadas pela sociedade civil. Nas situações acima – e em tantas outras que observamos no teatro cotidiano de nossas vidas – o contrato de constituição de renda tem muita valia, para moldar a harmonização dos interesses e a resolução de conflitos.
Fonte: Espaço Vital