Negociado coletivo sobre o legislado na jurisprudência atual do TST

Em 2017, entre as novidades trazidas pela reforma trabalhista (Lei nº 13.467/2017), [1] passou-se a prever textualmente a prevalência do negociado coletivo — expresso em normas coletivas, a saber, Convenção Coletiva de Trabalho e Acordo Coletivo de Trabalho — sobre o legislado.
Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do Tema 1.046, confirmou a constitucionalidade da prevalência do negociado coletivo sobre o legislado, admitindo a estipulação de limitações ou afastamento de direitos trabalhistas em acordos ou convenções coletivas de trabalho, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis.
A decisão, reforçando a aplicabilidade da lei, tem se feito sentir na jurisprudência dos tribunais trabalhistas.
Só no último mês três decisões do Tribunal Superior do Trabalho (TST) sobre o tema foram noticiadas – todas envolvendo jornada de trabalho; mais precisamente, sobre: (i) desconto do salário pela existência de saldo negativo no banco de horas (“banco de horas negativo”), [2] (ii) supressão de controle de jornada, [3] e (iii) redução do intervalo intrajornada. [4]
Nos três casos, o TST reconheceu a prevalência da norma coletiva em detrimento da lei, sinalizando expressamente mudança em sua orientação jurisprudencial.
Lei nº 13.467/2017 e o Tema 1.046 da Repercussão Geral do STF
Por ocasião do advento da Lei nº 13.467/2017, foi objeto de destaque nos noticiários a inserção expressa da prevalência do negociado sobre o legislado na legislação trabalhista.
Inobstante: (a) a relevância dos sindicatos, da autonomia negocial coletiva e das normas coletivas no ordenamento jurídico brasileiro — inclusive constitucional — e nas relações laborais — dada sua aptidão para amoldar-se à realidade laboral e às particularidades de cada setor econômico e profissional — ; e (b) a existência de previsões constitucionais expressas admitindo a flexibilização de determinados direitos trabalhistas por meio de negociação coletiva; na praxe forense trabalhista tornou-se usual a nulidade de cláusulas de normas coletivas — ainda que estipuladas mutuamente e mediante contrapartidas negociadas, expressas ou não.
No ambiente judicial, à falta de regulação legal, divergia-se, casuisticamente, sobre os critérios a considerar na avaliação da validade do instrumento coletivo, se seriam exigidas contrapartidas ou deveriam ser presumidas na negociação, se as contrapartidas deveriam ser escritas ou ao menos expressas, divergia-se quanto aos direitos disponíveis, passíveis de negociação, entre outros.
Nessa quadra, o abalo da proteção da confiança, o descrédito em relação à atuação das entidades sindicais, do papel da negociação coletiva e do próprio Direito Coletivo do Trabalho são alguns dos efeitos deletérios da reiterada anulação casuística de cláusulas de instrumentos coletivos — notadamente quando ignoradas as contrapartidas negociadas, expressas ou não, criando-se verdadeiras “colchas de retalho” e rompendo o sinalagma contratual. A prática acaba por estimular a litigiosidade e o venire contra factum proprium.
Diante desse cenário, o legislador de 2017 estabeleceu que “a convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei” quando dispuserem sobre os temas elencados nos incisos do artigo 611-A da CLT, [5] e, de outro lado, proibiu a supressão ou redução através de norma coletiva dos direitos mínimos dispostos no 611-B da CLT, [6] em rol inspirado no artigo 7º da Constituição. Nota-se um filtro prévio realizado pelo Legislativo para identificação dos direitos trabalhistas disponíveis por acordo ou convenção coletiva de trabalho.
Entre outras disposições, a lei passou a estabelecer:
(a) a incidência expressa do princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva no exame das convenções coletivas ou acordos coletivos de trabalho, restringindo a atuação da Justiça do Trabalho à análise de conformidade dos elementos essenciais do negócio jurídico (cfr. artigos 611-A, § 1º, e 8º, § 3º, CLT c/c artigo 104, Código Civil);
(b) que a inexistência de contrapartidas recíprocas expressamente indicadas nos instrumentos coletivos não configura vício do negócio jurídico, razão pela qual não ensejam nulidade (cfr. artigo 611-A, § 2º, CLT);
(c) o litisconsórcio necessário entre os sindicatos partícipes da elaboração do instrumento coletivo de trabalho na ação que tenha por objeto a anulação de suas cláusulas (cfr. arigo. 611-A, § 5º); e
(d) que “[n]a hipótese de procedência de ação anulatória de cláusula de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho, quando houver a cláusula compensatória, esta deverá ser igualmente anulada, sem repetição do indébito” (art. 611-A, § 4º), evitando distorções no tocante às contrapartidas.
Diante das controvérsias que cresceram em torno do tema [7], o STF, no ARE nº 1.121.633, reconheceu a natureza constitucional da matéria e a Repercussão Geral existente (Tema nº 1.046), declarando a constitucionalidade das regras introduzidas pela Lei nº 13.467/2017. Firmou o Supremo a seguinte tese:
Portanto, o STF afirmou a constitucionalidade da prevalência do negociado coletivo sobre o legislado — admitindo a estipulação de limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas em acordos ou convenções coletivas de trabalho, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis.
São significativos os reflexos da decisão na jurisprudência dos tribunais trabalhistas.
Prevalência do negociado sobre o legislado em recentes decisões do TST envolvendo jornada de trabalho: flexibilização de direitos
Três recentíssimas decisões do TST mereceram a atenção dos meios de comunicação, a saber:
(1) acórdão da 2ª Turma no Recurso de Revista (RR) nº 116-23.2015.5.09.0513, [9] que julgou válida cláusula de norma coletiva que permitia o desconto do salário por banco de horas negativo;
(2) da 5ª Turma, no RR nº 705-78.2020.5.10.0103, [10] que admitiu a supressão, por meio de norma coletiva, de controle de jornada para determinados trabalhadores;
(3) e da SDI-2 no Recurso Ordinário (RO) nº 101675-61.2017.5.01.0000, [11] que validou a redução do intervalo intrajornada pela metade por meio de norma coletiva (mesmo celebrada anteriormente à Lei nº 13.467/2017).
No tocante ao primeiro acórdão citado, a 2ª Turma do TST, no Recurso de Revista nº 116-23.2015.5.09.0513, de relatoria da ministra Maria Helena Mallmann, por unanimidade, considerou válida norma coletiva que permite o desconto do salário do empregado no caso de “banco de horas negativo”, isto é, quando há mais horas devidas pelo trabalhador do que horas de crédito no banco de horas.
No caso, o Ministério Público do Trabalho (MPT), recorrendo ao TST de acórdão do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 9ª Região que reconhecia a validade da cláusula, defendia que a decisão estaria em desalinho com a jurisprudência de outros Tribunais Regionais, que entendiam pela “impossibilidade de ser ajustado desconto salarial a título de saldo negativo do banco de horas, haja vista a inadmissibilidade de transferência do ônus da atividade econômica para o trabalhador”, postulando, assim, a nulidade das cláusulas coletivas.
A 2ª Turma do TST reconheceu que, de fato, a orientação jurisprudencial antes predominante no âmbito do próprio TST — expressa em vários precedentes da Seção Especializada em Dissídios Coletivos (SDC) — era no sentido da nulidade da norma coletiva “com previsão de desconto de horas extras não compensadas no salário ou nas verbas rescisórias, haja vista a ausência de previsão legal, bem como por configurar transferência dos riscos da atividade econômica para o trabalhador”, panorama que sofreu alteração notadamente após o julgamento do ARE nº 1.121.633 pelo STF.
No enfrentamento do mérito da controvérsia, a Turma entendeu que caso “a carga horária não seja cumprida e o banco de horas fique negativo, as empresas poderão descontar as horas devidas ao fim de 12 meses”, ou antes disso, caso haja pedido de demissão ou dispensa por justa causa.
Segundo o acórdão, o desconto “por si só, não é incompatível com a Constituição Federal, tratado internacional ou norma de medicina e segurança do trabalho”, e, na verdade, poderia até ser benéfico ao trabalhador, pois oferece a possibilidade de compensar faltas e atrasos pelo período de doze meses – antes de se proceder a desconto em folha.
Por fim, frisou o julgado não haver qualquer registro de comportamento de má-fé por parte do empregador — seja ocultando dos empregados o saldo negativo do banco de horas, ou os impedindo de compensar o saldo negativo de horas.
Quanto à segunda decisão, trata-se do acórdão proferido pela 5ª Turma do TST no julgamento do RR nº 705-78.2020.5.10.0103. O Tribunal afastou o pagamento de horas extras por excesso de jornada e supressão de intervalos a um empregado então exercente do cargo de Coordenador de Segurança, ante a existência de cláusula específica [12] estipulada em Acordo Coletivo de Trabalho, que excluía os trabalhadores exercentes de atividade externa do controle de jornada — enquadrando-os na exceção do artigo 62, I da CLT.
Apesar da existência da mencionada cláusula, a sentença originária entendeu que a empresa “optou pelo não-controle, embora tivesse meios de avaliar e quantificar a disponibilidade do trabalhador”, condenando-a ao pagamento de horas extras e supressão de intervalo, baseando-se, essencialmente, na prova oral circunstancial da ação individual, compreendendo que a norma coletiva invocada seria inaplicável por ausência de labor externo. O Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região manteve a decisão.
Diversamente posicionou-se a 5ª Turma do TST: lastreando-se na atual jurisprudência do STF, entendeu que a norma disposta no Acordo Coletivo não trata de direito absolutamente indisponível e nem constitui objeto ilícito para negociação coletiva, conforme rol do artigo 611-B, CLT, de modo que “não há como desprestigiar a autonomia da vontade coletiva das partes, passando-se ao exame da exclusão do reclamante da norma pela Corte Regional”.
E entendeu a Turma que as premissas de fato estabelecidas no acórdão do Tribunal Regional não permitiam concluir pela ausência de autonomia do trabalhador em relação à sua jornada, razão pela qual deveria prevalecer o Acordo Coletivo celebrado.
No dizer do voto condutor, o Tribunal de origem, ao afastar a norma coletiva, terminou por “desprestigiar a autonomia da vontade coletiva das partes”, contrariando a tese vinculante do STF. Os ministros concluíram, por unanimidade, pelo provimento aos recursos, afastando o pagamento de horas extras por excesso de jornada e supressão de intervalos.
Por fim, o terceiro acórdão: a SDI-2 do TST, por unanimidade, no julgamento do Recurso Ordinário nº 101675-61.2017.5.01.0000, [13] da relatoria da ministra Morgana de Almeida Richa, julgou procedente pedido formulado em Ação Rescisória para desconstituir acórdão do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região e, em juízo rescisório, reconhecer a existência e validade de norma coletiva anterior à Lei nº 13.467/2017 que reduzia o intervalo intrajornada para trinta minutos em relação a um determinado setor da empresa.
A decisão menciona o “paradoxo” existente: o sindicato reputa lícita e negociável a redução do intervalo, mas depois busca a nulidade da cláusula em juízo (agora entendendo que seria nociva à saúde, higiene e segurança do trabalho), para postular indenização.
E nessa linha, o acórdão traz relevante reflexão para o debate: o valor negociado teria sido a saúde dos empregados por ele representados?
Esse proceder atentaria contra a proteção da confiança em sentido amplo existente na autonomia negocial coletiva — fazendo o acórdão referência a trechos do voto do Ministro Gilmar Mendes no julgamento do Tema 1.046, quando cita que as negociações coletivas são pautadas pelos princípios da lealdade e da transparência, porquanto resultam mais do que em meras cláusulas contratuais, em normas jurídicas para a sociedade.
Acresce o acórdão que a chancela dada pela Constituição aos Sindicatos acentua seu relevante papel na “representação qualificada das categorias, como ferramenta de defesa de seus direitos e melhoria das condições de trabalho”, o que, também importa na “imperiosa assunção de responsabilidades pelos entes coletivos”.
Neste contexto, o acórdão, dando provimento ao recurso interno, valida a cláusula inserta em norma coletiva, destacando que a “redução do intervalo está inserida na regra geral de disponibilidade de direitos para fins de pactuação na seara coletiva”, pois
(a) a própria CLT sempre admitiu a flexibilização do período mínimo de uma hora (cfr. artigo 71, § 3º), e (b) a Lei nº 13.467/2017 ratificou expressamente a disponibilidade relativa do direito ao intervalo intrajornada por meio de norma coletiva — a prevalecer sobre a lei, desde que observado um intervalo mínimo de trinta minutos para jornadas superiores a seis horas (cfr. art. 611-A, III, CLT).
Notas conclusivas
A introdução dos arts. 611-A e 611-B à CLT — e do § 3º ao artigo 8º —, e sua posterior validação constitucional pelo Supremo Tribunal Federal tiveram o condão de modificar, substancialmente, na prática jurisdicional trabalhista, o exame da validade das cláusulas de normas coletivas de trabalho.
Com efeito, as alterações legislativas promovidas pela reforma trabalhista no âmbito da negociação coletiva corroboraram uma percepção constitucional que se vinha construindo na jurisprudência fragmentada do Supremo Tribunal Federal em torno do tema — e, especialmente, no tocante ao alcance da autonomia da vontade coletiva —, culminando na tese assentada no Tema nº 1.046 da Repercussão Geral, que reconhece a constitucionalidade da primazia do negociado coletivo sobre o legislado, ressalvados direitos absolutamente indisponíveis.
Da análise dos recentes acórdãos proferidos pelo TST, pode-se constatar que a aferição da (in)validade e consequente decretação de nulidade de cláusulas de instrumentos de negociação coletiva se tornou mais criteriosa e rigorosa — inclusive pela existência de parâmetros legais para tanto.
As decisões reafirmam, na prática quotidiana, a prevalência do negociado coletivo sobre o legislado, reforçando a proteção da confiança depositada na autoridade das normas coletivas.
Afigura-se imperativo que os envolvidos na negociação coletiva ajam de forma responsável, leal e transparente.
A atuação das entidades sindicais, das empresas e dos trabalhadores deverá ter como norte a boa-fé objetiva, com observância de seus deveres anexos — notadamente o non venire contra factum proprium e nemo auditur turpitudinem allegans.
Fonte: Conjur