Todos os dias sociedades empresariais são transformadas, fusionadas, incorporadas, cindidas e/ou sucedidas por outras para a entrada em um mercado, para ampliação da posição, consolidação de marca ou mesmo para a otimização da estrutura societária.
E, muito além de consequências societárias, a realização das operações possui reflexos em vários outros ramos do Direito, tal como o tributário.
Disso advém a dúvida: qual o reflexo das operações no direito à repetição do indébito indevidamente recolhido pelas sociedades transformadas, fusionadas, incorporadas, cindidas ou sucedidas?
O ordenamento jurídico brasileiro é pacífico ao vedar o enriquecimento ilícito do Estado, pelo que garante ao contribuinte o direito à repetição de indébito, consistente na devolução dos valores indevidamente recolhidos a título de tributos (crédito).
Essa devolução se dá, usualmente, no prazo de cinco anos do recolhimento indevido, pela (1) compensação administrativa do crédito com débitos devidos (artigo 74 [1], da Lei nº 9.430/96); ou, (2) pela restituição em espécie desse montante, após a expedição de precatório judicial (artigo 165, I [2], do Código Tributário Nacional (CTN).
A repetição de indébito, portanto, é gênero, das quais a compensação e a restituição são espécies. Por esse motivo, o Superior Tribunal de Justiça já definiu que cabe ao contribuinte optar por receber esses valores pela via que melhor lhe couber (Súmula nº 461/STJ [3]).
Lacuna no CTN
Dada essa garantia ao contribuinte e sendo notória a vedação ao enriquecimento ilícito do Estado, era de se esperar que o Código Tributário Nacional, como lei geral que regulamenta as relações jurídico-tributárias, previsse o tratamento do direito creditório das sociedades transformadas, fusionadas, incorporadas, cindidas ou sucedidas, certo? Mas não foi o que aconteceu.
O CTN não traz disposição expressa tratando sobre a transferência do direito creditório após a realização societária, limitando-se a prever as hipóteses de responsabilidade tributária da sociedade resultante da operação societária pelo pagamento dos débitos devidos pela sociedade fusionada, incorporada ou transformada até a data da operação (artigo 132 [4], do CTN).
A ausência de dispositivo nesse sentido, entretanto, não permite concluir, por si só, que o direito creditório não pode ser aproveitado após a realização de uma operação de restruturação societária.
Isso porque, a incorporação, fusão e cisão são conceitos de direito privado estabelecidos na Lei nº 6.404/76, que dispõe sobre a sociedade por ações, que consistem na reestruturação de uma sociedade por meio da absorção, junção ou separação, respectivamente, dos seus direitos e obrigações.
E, por assim ser, o silêncio do legislador leva ao intérprete à busca do preenchimento da lacuna pela utilização desses princípios e conceitos, aplicáveis às operações societárias (e suas consequências), os quais devem ser integralmente observados pela legislação tributária (artigos 109 [5] e 110 [6], do CTN e jurisprudência).
Lei 6.404/76, jurisprudência do Carf e Receita
Nesse ponto, a Lei nº 6.404/76 não deixa dúvidas ao dispor que a sociedade resultante da operação “sucederá em todos os direitos e obrigações” a sociedade objeto da operação societária (artigos 227 [7], 228 [8] e 229, § 1º [9], da Lei nº 6.404/76). O direito creditório da sociedade objeto da operação societária, por sua vez, incorpora ao seu patrimônio (tanto que são registrados no ativo), classificando-se inequivocamente como direitos passíveis de sucessão.
Assim, é inafastável a conclusão de que o ordenamento jurídico brasileiro autoriza a transferência do direito creditório da sociedade incorporada, fusionada, cindida ou sucedida, face ao Fisco, à sociedade resultante da operação societária.
Até mesmo porque, em prol do equilíbrio das relações jurídico-tributárias entre Fisco e contribuintes e da segurança jurídica, é razoável concluir que se à sociedade resultante da operação societária é atribuía a responsabilidade pelo pagamento de tributos eventualmente devidos até a data a operação, a ela será garantido o direito ao indébito tributário.
Esse direito já foi reconhecido inúmeras vezes pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) que, em recente acórdão, determinou o retorno dos autos à primeira instância administrativa para análise do direito creditório.
A Receita Federal, embora imponha algumas ressalvas, como a exigência de substância econômica da operação societária [11], também não tem divergido sobre a possibilidade de aproveitamento do crédito tributário pela sucessora. Tanto é assim que a Instrução Normativa RFB nº 2.055/21, que dispõe sobre as hipóteses de restituição, compensação, ressarcimento e reembolso, prevê que “no caso de sucessão empresarial, terá legitimidade para pleitear a restituição a empresa sucessora” (artigo 15). De igual forma, é o entendimento exarado na Solução de Consulta Interna Cosit nº 3/11. Conclusão
Parece inequívoco, portanto, o direito à recuperação dos valores indevidamente recolhidos pela sociedade resultante da operação, em nome da sociedade incorporada, cindida ou fusionada, o qual poderá ser operacionalizado da forma que lhe beneficiar.
Caso opte pela compensação, a sociedade deverá habilitar o crédito junto à Receita Federal apresentando, dentre outros documentos, “cópia dos atos correspondentes aos eventos de cisão, incorporação ou fusão, se for o caso”; (artigo 102, § 1º, V, da IN RFB nº 2.055/21) e, na hipótese de o pedido de habilitação já ter sido realizado, é necessário informar à Receita, nesse próprio procedimento, para a regular utilização direito creditório.
Caso a opte pela restituição em espécie, na via judicial, deverá ser apresentada a documentação que suporte a operação societária no momento do ajuizamento ou ser feito o requerimento (ainda que no próprio cumprimento de sentença) pleiteando a sua substituição processual, conforme artigo 110 [12], do Código de Processo Civil.
Nesse cenário, respondendo ao questionamento proposto, é possível concluir que a realização de uma operação societária não afasta o direito da sociedade resultante da operação de aproveitar e operacionalizar a repetição do indébito tributário, seja via compensação, seja via restituição, em nome da sociedade fusionadas, incorporadas, cindidas ou sucedidas, sob pena de desequilibrar a relação jurídico-tributária e violar o princípio da capacidade contributiva.
Desse modo, é inadequada qualquer tentativa de restrição à esse direito, havendo sólidos argumentos em favor do aproveitamento do direito creditório, caso negado pela administração tributária.________________________________________
[1] Art. 74. O sujeito passivo que apurar crédito, inclusive os judiciais com trânsito em julgado relativo a tributo ou contribuição administrado pela Secretaria da Receita Federal, passível de restituição ou de ressarcimento, poderá utilizá-lo na compensação de débitos próprios relativos a quaisquer tributos e contribuições administrador por aquele Órgão. (Redação dada pela Lei nº 10.637, de 2002)
[2] Art. 165. O sujeito passivo tem direito, independentemente de prévio protesto, à restituição total ou parcial do tributo, seja qual for a modalidade do seu pagamento, ressalvado o disposto no § 4º do artigo 162, nos seguintes casos:
I – cobrança ou pagamento espontâneo de tributo indevido ou maior que o devido em face da legislação tributária aplicável, ou da natureza ou das circunstâncias materiais do fato gerador efetivamente ocorrido;
[3] Súmula nº 461. O contribuinte pode optar por receber, por meio de precatório ou por compensação, o indébito tributário certificado por sentença declaratória transitada em julgado.
[4] Art. 132. A pessoa jurídica de direito privado que resultar de fusão, transformação ou incorporação de outra em outra é responsável pelos tributos devidos até à data do ato pelas pessoas jurídicas de direito privado fusionadas, transformadas ou incorporadas.
[5] Art. 109. Os princípios gerais de direitos privado utilizam-se para a pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários.
[6] Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.
[7] Art. 227. A incorporação é operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações. (…).
[8] Art. 228. A fusão é operação pela qual se unem duas ou mais sociedades para formar sociedade nova, que lhe sucederá em todos os direitos e obrigações. (…).
[9] Art. 229. A cisão é a operação pela qual a companhia transfere parcelas do seu patrimônio para uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes, extinguindo-se a companhia cindida, se houver versão de todo o seu patrimônio, ou dividindo-se o seu capital, se parcial a versão.
§1º. Sem prejuízo do disposto no artigo 233, a sociedade que absorver parcela do patrimônio da companhia cindida sucede a esta nos direitos e obrigações relacionados no ato da cisão; no caso de cisão com extinção, as sociedades que absorverem parcelas do patrimônio da companhia cindida sucederão a esta, na proporção dos patrimônios líquidos e transferidos, nos direitos e obrigações não relacionados.
[10] Vide Acórdão nº 3302-014.020. Publicação em: 4/3/2024.
[11] Vide SC Cosit 321/17.
[12] Art. 110. Ocorrendo a morte de qualquer das partes, dar-se-á a sucessão pelo espólio ou pelos seus sucessores, observado o disposto no art. 313, §§ 1º e 2º.
Fonte: Conjur